Fábio André Malko
A atuação dos tribunais, historicamente pautada pelo equilíbrio entre a garantia de direitos e a manutenção da ordem pública, tem assumido, nos últimos tempos, um papel de protagonismo inesperado. Decisões que antes se limitavam à resolução de conflitos jurídicos agora se inserem no coração de um cenário político cada vez mais polarizado. A recente prisão preventiva do cantor Gusttavo Lima, ordenada pela Justiça pernambucana e logo revogada por instância superior, levanta questionamentos que transcendem a análise jurídica: seria o sistema judiciário uma instituição imparcial ou estaria, ainda que involuntariamente, sendo arrastado pela dinâmica política e midiática?
A prisão preventiva é, por sua natureza, uma medida excepcional. Ela exige a comprovação de risco à ordem pública, de fuga ou de obstrução da justiça. No entanto, o uso exacerbado dessa ferramenta, quando adotado sem a devida fundamentação legal ou pautado em exercícios de “futurologia”, resulta na antecipação de uma punição e na degradação da credibilidade das cortes. É nesse ponto que a legalidade encontra seu limite, tornando-se preocupante quando se perde de vista o princípio da presunção de inocência. No caso de Pernambuco, ao transformar a prisão de uma figura pública em espetáculo midiático, o poder judicial foi colocado no centro de um debate que extrapola a técnica jurídica e envolve questões políticas e sociais mais amplas.
Essa intersecção entre tribunais, mídia e política, especialmente no atual ambiente de polarização, cria uma situação em que decisões judiciais se tornam poderosas ferramentas de manipulação pública. A tensão entre os Poderes da República, exacerbada pela presença das redes sociais, gera uma dinâmica perigosa, na qual decisões judiciais, por mais fundamentadas que sejam, correm o risco de serem interpretadas como respostas a pressões políticas ou populares.
O caso recente do bloqueio de perfis em redes sociais e até mesmo o banimento da plataforma X (antigo Twitter) no Brasil é um exemplo claro dessa situação. Embora seja legítima a preocupação com a disseminação de desinformação e discursos de ódio, o bloqueio de redes sociais inteiras e a censura de perfis trazem à tona questões fundamentais sobre a proporcionalidade das medidas e o impacto na liberdade de expressão. Mesmo sem condições de opinar tecnicamente, devido ao processo sigiloso que envolve o caso, é inegável que, ao intervir em espaços de debate público como as redes sociais, as autoridades judiciais precisam equilibrar a proteção da sociedade com a manutenção dos direitos individuais, sob pena de serem vistas como agentes de controle e censura.
Embora não seja desejável que os magistrados pautem suas decisões pela opinião pública, é inegável que o impacto de suas deliberações transcende o âmbito jurídico, alcançando esferas políticas e sociais. Em um ambiente de polarização, a narrativa sobre censura ou proteção contra atos antidemocráticos rapidamente ganha força nas esferas midiática e política. A judicialização dessas questões coloca o poder judicial em uma posição delicada, onde decisões que deveriam ser interpretadas à luz da legalidade acabam sendo utilizadas como instrumentos de mobilização política. Adotar uma postura espetaculosa ou excessivamente rígida pode levar a equívocos, que contribuem para a corrosão de sua credibilidade.
Por outro lado, nunca é demais recordar uma frase atribuída tanto a Dom Pedro II quanto a Ruy Barbosa, que ecoa na atualidade: “Imprensa se combate com imprensa”. Dom Pedro II, conhecido por sua postura liberal em relação à liberdade de expressão, teria utilizado a frase no contexto de defesa da imprensa livre, como uma crítica à censura. Ele acreditava que a melhor forma de lidar com os excessos da imprensa era permitir o debate público, reforçando a liberdade de expressão como um direito essencial. Ruy Barbosa, por sua vez, também defensor ferrenho da liberdade de imprensa, enxergava nela um papel fundamental na fiscalização do poder. Para ele, a verdade deveria ser o pilar dessa liberdade.
Desconsiderar o papel essencial das redes sociais na formação da opinião pública e na disseminação de informações pode obscurecer o fato de que elas contêm, em sua essência, a semente da solução para o problema da desinformação. Adaptando a frase creditada a esses dois grandes ícones da história brasileira ao contexto atual, podemos afirmar: desinformação se combate com informação. A censura não é a resposta eficaz para o avanço de atos antidemocráticos nas redes, e o Poder Judiciário, ao adotar medidas como o bloqueio de plataformas inteiras, corre o risco de agravar o problema. O que se espera é uma abordagem que promova o diálogo e a educação, e não apenas a supressão de espaços de debate.
Adotar uma postura equilibrada e imparcial diante das pressões midiáticas pode fortalecer o sistema de justiça em um ambiente cada vez mais digital. Em vez de medidas extremas, como prisões preventivas espetaculosas e sem embasamento claro ou o bloqueio de redes sociais, os tribunais poderiam desempenhar um papel mais ativo e construtivo na educação da sociedade. Utilizando as redes sociais de forma estratégica, o Judiciário pode oferecer informações claras e acessíveis sobre suas decisões, engajar-se diretamente com o público e combater a desinformação por meio da difusão de conteúdos qualificados. Para que esse esforço seja eficaz, é fundamental que o sistema de justiça invista na capacitação de seus integrantes, trazendo especialistas em comunicação digital e firmando parcerias com as próprias plataformas, a fim de construir um diálogo mais transparente e próximo com a população. Dessa forma, a credibilidade da Justiça será reforçada por uma postura de abertura e diálogo, em vez de medidas que possam ser interpretadas como restritivas ou autoritárias.
É preciso reconhecer que o papel dos tribunais, especialmente em tempos de crise, não se limita à aplicação rígida da lei, mas também à preservação da confiança pública em suas decisões. Para que isso seja possível, é essencial que as cortes se envolvam na construção de um ambiente informativo saudável, que contribua para a formação crítica da população. Isso passa por uma participação ativa nas redes sociais, por meio da disseminação de informação confiável, ajudando a educar a sociedade e, assim, combater a desinformação de maneira eficaz.
Em vez de recorrer à censura ou a decisões espetaculares, os tribunais devem capitanear as mudanças, tornando-se agentes da construção de um novo entendimento, exercendo sua auto-moderação e buscando o entendimento do impacto social cada vez mais acentuado de suas medidas. Assim, agindo de forma construtiva e não meramente restritiva e impositiva, abrindo espaços de diálogo, atuaria como uma força educadora, capaz de lidar com as novas realidades tecnológicas e sociais sem comprometer as garantias fundamentais que juraram proteger.
Em última análise, a resistência dos tribunais em adotar uma postura construtiva diante das novas realidades pode resultar no perigoso esgarçamento do tecido social. A insistência em resgatar uma “normalidade” obsoleta revela-se um esforço insensato e contraproducente. O mundo evolui, a descentralização da informação é uma realidade irrevogável, e a verdade dos fatos inevitavelmente se impõe, ainda que muitos escolham ignorá-la.
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Nota do Autor: Este artigo reflete exclusivamente a opinião pessoal do autor sobre os temas discutidos. As análises e argumentos apresentados são baseados em interpretações individuais dos fatos e têm como objetivo contribuir para o debate público. O artigo não pretende ser uma representação exata ou exaustiva de todas as perspectivas possíveis, e as opiniões expressas não devem ser interpretadas como declarações definitivas ou conselhos legais. Convido os leitores a refletirem sobre as questões abordadas e a formarem suas próprias opiniões a partir das informações disponíveis.